sexta-feira, 13 de outubro de 2017

ENRAIZADOS

"Agnieszka e Kasia são melhores amigas e levam uma vida tranquila no vale. As margens do vilarejo onde moram fica a temida Floresta corrompida, cheia de um poder maligno desconhecido. Para impedir que ele avance para além das fronteiras da Floresta, o povo do vale conta somente com a proteção de um mago frio e ambicioso, o Dragão, que a cada dez anos exige que uma jovem do vilarejo seja entregue para servi-lo. Enquanto a próxima escolha se aproxima, Agnieska teme por sua bela, graciosa e corajosa amiga. Mas pode ser que ela esteja errada. Porque, quando o Dragão chegar, não é Kasia que ele vai escolher."


Vou começar dizendo o seguinte: Enraizados é tão bom que eu, que tinha o original em inglês no Kindle, comprei a edição nacional com o duplo objetivo de ter na minha estante (algo tão lindo e com aquela capa não merece ficar confinado ao formato digital) e contribuir com as vendas nacionais (para incentivar que este tipo de livro continue vindo para cá).

Que o fato dessa pessoa louca que vos escreve ter comprado duas vezes a mesma obra sirva de testemunho para o fato de que estamos diante de uma coisa maravilhosa S2.



Enraizados é digno de Diana Wynne Jones, Neil Gaiman e Juliet Marillier. Não é a toa que foi indicado para diversos prêmios importantes (como o Hugo Awards) e ganhou o Nebula Awards, concedido pela Science Fiction and Fantasy Writers of America.

Em termos de estilo, lembra as obras de Jones como um todo e Stardust de Gaiman: é uma fantasia tradicional, com um quê de contos de fada e certa despretensiosidade, que consegue balancear bem o humor e o drama e manter, ao longo da narrativa, uma leveza peculiar.

Enraizados possui ainda uma qualidade das obras de Marillier que é oferecer ao leitor uma experiência singular de imersão naquele universo descrito pelo autor, quase como se você fosse parte dele. Impossível não sentir que a magia descrita nas páginas de Enraizados é palpável, que você conhece aqueles vilarejos e aquelas pessoas desde sempre e que a Floresta é, de fato, uma constante presença opressora e sinistra.  De cabeça, me vem apenas alguns livros que me proporcionaram experiência similar, como a série Sevenwaters, da já mencionada Juliet Marillier, as Brumas de Avalon e Calafrio (do qual não gostei, mas reconheço que em termos de atmosfera é acima da média).

Sobre as personagens, Agnieszka, com sua determinação, intuição e dom para estar sempre com sujeira e rasgos nas roupas, e o Dragão, com seu mal humor e sarcasmo habitual, formam uma dupla sobre a qual é delicioso de se ler. Principalmente quando ambos começam a se alfinetar: nada eleva mais o meu humor do que diálogos espirituosos e uma rápida troca de insultos (Orgulho e Preconceito é o culpado, claro). As personagens secundárias também são interessantes e o mesmo vale para os antagonistas - alguns, inclusive, detestáveis, mas ao mesmo tempo dignos de simpatia em alguns aspectos (o Príncipe Marek é um idiota, mas é difícil não entender em parte a finalidade que o move). De forma geral, a autora faz um trabalho fantástico ao lançar mão dos estereótipos dos contos de fada, seja utilizando-os (a garota camponesa e o mago) ou subvertendo-os (a bela donzela e o príncipe), mas sempre mantendo camadas de profundidades na caracterização de suas personagens.

Apesar de se tratar de uma estória leve, é interessante como os relacionamentos de suas personagens são compostos de várias nuances. A autora não tem medo de mostrar as emoções "feias" (inveja, raiva, rancor, culpa...) que acompanham até os mais sólidos e verdadeiros laços de família, amizade e amor. Sentir emoções conflitantes em relação às pessoas mais queridas a nós é, afinal, parte da condição humana.

E falando em personagens, Enraizados nos brinda com uma das antagonistas mais originais que eu já vi: a Floresta. Sim, você leu certo. Claro que é bem mais complexo do que eu faço parecer aqui (e não vou entrar em detalhes para não estragar as surpresas), mas a grande força ameaçadora e maligna da narrativa é um bosque, que avança sobre os vilarejos,  corrompe as mentes dos que se atrevem a se aproximar ou ir muito longe dentro dos seus caminhos e serve de lar para seres que capturam vítimas inocentes que nunca mais são vistas. 




É algo simultaneamente muito original e um resgate dos contos de fadas clássicos, nos quais as florestas encantadas eram frequentemente retratadas como locais perigosos associados ao mal (pense em Chapeuzinho Vermelho ou João e Maria, por exemplo). Tal associação era uma forma inteligente e simples de dizer às crianças da época "não vá muito longe de casa, nem entre na floresta sem supervisão, ou você sabe o que pode acontecer". E, de fato, uma das principais funções das estórias populares sempre foi a de servir como  avisos ou "cautionary tales", na expressão original em inglês.

A utilização da Floresta de forma tão central em Enraizados não é acidental. A inspiração da obra é, afinal, o folclore eslavo e muitos dos contos de fadas como os conhecemos hoje vem de compilados feitos a partir das narrativas folclóricas europeias. Nesse contexto, a resenha de Enraizados feita pelo blog Coruja em Teto de Zinco Quente (link aqui) lembra bem porque Enraizados deve ser visto mais como um conto de fadas original e menos como uma fantasia clássica. O mesmo vale para as obras de Jones ou Gailman, com as quais fiz comparações. Menciono este ponto porque entre as críticas negativas que li em relação à obra (e embora tenham sido poucas), um denominador comum é o de que não há em Enraizados uma explicação sobre o sistema de magia ou "regras" claras sobre o funcionamento do mundo. A mencionada resenha do Coruja em Teto de Zinco Quente explica bem o porquê disso não importar aqui -  vale a leitura.

Quanto mais reflito sobre a obra, mais me convenço de que Enraizados foi construída em camadas e permite níveis de imersão distintos de acordo com a preferência do leitor.  Por trás de todos os acontecimentos que movimentam a obra de Naomi Novik, contudo, para mim Enraizados é antes de mais nada uma reflexão sobre raízes, lar, pertencimento e o processo de se tornar adulto - todos temas que ressoam de forma universal, como um bom conto de fadas deve fazer. 

Narrativa: 5/5
Desenvolvimento das personagens: 5/5
Fator X: Um verdadeiro conto de fadas moderno, verdadeiro aos clássicos e original o suficiente para não ser uma simples releitura.
Avaliação Geral: 5/5 (e muito amor!)


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